Nos últimos
dias, diante de absurdos que li e vejo, escrevo novamente sobre o
tema da tragédia da boate Kiss, ocorrida na cidade de Santa Maria,
Rio Grande do Sul, Brasil, em 27 de janeiro de 2013. Sim, relembro
local e a data. Sem negar.
Se tu achas
que isso é fazer aumentar a dor dos pais, familiares e
sobreviventes. Se pensas que isso é falar de algo que faz chorar e
que mexe com a dor alheia, então vou te dizer que o que escrevo ou
falo não é nada, absolutamente nada, se comparado a dor da perda
desses pais. É óbvio que faz chorar, lembra o dia, a dor, a perda.
Mas não me venha com teu egoísmo disfarçado de não podermos mais
tocar no assunto, pois causa tristeza. Sim, causa tristeza. Mas
também causa reflexão, questionamentos e a busca para que nunca
mais ocorra.
É em função
de pensares apenas em ti que faz com que não queiras mais tratar do
tema, não desejas mais fazer caminhadas por esses pais, não te unas
a causa da busca da verdade e da justiça. Não dissimules teu
exacerbado individualismo.
Como
disseram-me vários pais. Não queremos vingança, isso não trará
nossos filhos de volta. Buscamos a justiça sendo feita em seus
diferentes graus de culpabilidade, como comentou-me outro pai. Ou
seja, o real entendimento do que aconteceu, sem cometer injustiças.
A generosidade do entendimento vem dos pais. Não vem da sociedade.
Que inversão de valores! Parem com a hipocrisia e vejam os fatos
reais. Esses pais, familiares e sobreviventes estão sendo esquecidos
por que tu não queres ver a realidade escancarada na tua cara.
Outra coisa.
Parem com essa falácia de que o tema faz a cidade de Santa Maria
regredir. Isso tem outro nome: covardia.
Santa Maria
vai continuar sendo a Cidade Universitária, Cidade Cultura, Cidade
Coração do Rio Grande do Sul e tantos outros codinomes que a marcam
para sempre. Mas também será lembrada como a cidade da tragédia da
boate Kiss. Negar essa realidade é negar os fatos. Negar é tudo o
que tem de pior em qualquer situação.
Nesse caso o
que está havendo é que, por vários motivos, sejam eles interesses
de qualquer natureza somados a um inacreditável egoísmo de uma
parte da cidade, todos estão virando de costas para esses pais. É
muito sórdido, como disse-me um pai. Querem jogar a gente para baixo
do tapete, como falou-me uma mãe.
Esses pais
merecem respeito. Vale para todos nós. Fazer uma homenagem vez por
outra, ficar triste em frente a TV quando falam do assunto, eu
compreendo, aceito. Mas o que temos de fazer de verdade é abraçar
esses pais. É lhes estender a mão. É tentar fazer com que tenham
um pouco de paz.
Já
refletistes que eles nunca receberam um pedido de desculpas. Sim, um
pedido de desculpas por tudo o que de pior poderia ter acontecido em
suas vidas.
Uma vez
minha mãe disse-me que perder um filho é a completa inversão da
ordem natural das coisas. Do fluxo da vida. Essa frase me acompanha
faz algum tempo.
Entrevistei
pais e sobreviventes próximo de um ano depois da tragédia, para
co-dirigir com o Paulo Nascimento o documentário Janeiro 27 e,
passados mais de dois anos, realizamos novas entrevistas para termos
uma ideia mais ampla de suas opiniões, indagações e reflexões. A
cada depoimento, te asseguro a sensação dolorosa da equipe. A exata
dimensão de não poder reverter o fato. Mas isso, perto do que
aqueles pais sentem, não significa nada. É muito egoísmo de minha
parte falar de tudo o que a equipe vivenciou.
Diante do
que ouvimos e vimos nas feições daqueles pais, nosso sentimento não
é nada. Não existe termo de comparação.
Entrevistei
pais a um metro de seus rostos, de suas lágrimas, de suas
incompreensões, de suas buscas. O que vi é doloroso, chega a ser
dolorido, tamanha a tensão de registrar aqueles depoimentos. Muito
difícil descrever. No entanto, em grau nenhum pode ser comparado a
dor daqueles pais e de todos os pais envolvidos nesse massacre.
Tragédias
são evitáveis, como disse-me um pai. Todas. Se houve é porque
vários erros absurdos aconteceram para chegarmos àquela terrível
madrugada. Por esses pais e por tudo que falo com eles, nos
comprometemos a fazer com que esse documentário realmente cumpra seu
maior objetivo: que todos reflitam e que busquemos insistentemente
para que não caia no esquecimento.
Passados
dois anos e alguns meses vejo pessoas escrevendo e dizendo para
esquecer! Como assim? Esquecer, negar, manipular o sentimento da
perda não é permitido. Isso tem outras adjetivações que
certamente passam longe daquilo que os seres humanos podem ter de
digno em relação ao outro.
Pare com a
balela de tentar tirar o foco da situação. Por que não tornar
Santa Maria uma cidade exemplo de prevenção, como sugerem os pais?
Se alguém
escreve ou diz algo defendendo os pais – reitero, defendendo os
pais! - sua busca por verdades, por tentar entender o que aconteceu,
parece surreal, mas já vem uma patrulha de pessoas dizendo que estão
se aproveitando da dor alheia. Que inversão de valores. Os únicos
que podem solicitar qualquer coisa nessa história são exatamente os
pais.
Respeite
suas buscas, suas reivindicações e manifestações. Pare de cercear
o que tem de mais sagrado na paternidade que é o amor incondicional.
Então, se
tu não queres fazer nada, eu respeito. Mas não venha atingir os
outros com a insignificância de apenas negar. Passados mais de dois
anos, já cessam os medicamentos aos sobreviventes, num auxílio que
deveria ser municipal, estadual e federal e que deveria durar, em
minha opinião, o quanto fosse necessário. Uma força tarefa da
dignidade.
Eu aplaudo
quando vejo alguém tentando auxiliar esses pais. Vejo coragem nisso.
Vejo humanidade. Pois essa causa parece ter cada vez menos pessoas,
fora pais, sobreviventes e familiares. Portanto, se alguém os ouve
e tenta lhes prestar auxílio tem meu total respeito.
Se tivesse
direito a um pedido permito-me: apoie os pais e suas reivindicações.
Lhes dê um forte abraço. Isso pode fazer toda a diferença.
Luiz Alberto Cassol
Co-Diretor do
documentário Janeiro 27
Artigo divulgado
originalmente, em 21 de agosto de 2015, no site do jornalista
Claudemir Pereira.
E, em 26 de agosto, na
Jornal On Line Sul 21.
http://www.sul21.com.br/jornal/nao-significa-nada-o-que-escrevo-sobre-a-kiss-por-luiz-alberto-cassol/